O pé e o passo
Um dia desses da criação, um pé percebeu que vivia na mais profunda tristeza.
Não havia jeito. Tinha que parar para ver o que vinha acontecendo consigo e
com suas relações de pé, já não muito firmes.
Sentia-se uma vítima. Lembrava-se que, durante a sua vida inteira, suportara o
peso de um corpo enorme sem o devido reconhecimento. Lamentava-se também de
que o seu próximo mais próximo, o outro pé, era um ingrato e despreocupado
colega de caminhos, um falso amigo que nada fazia para que as coisas mudassem.
Já era tempo de fazer alguma coisa.
Colocou-se a postos e, nesse mesmo instante, sentiu-se inseguro, incapaz de
dar um passo.
Era um medo pânico, sem palavras, um medo surdo que não o deixava entender
mais nada. Um medo cego que o impedia de tudo, menos de sentir muita raiva do
outro pé e daquele corpo pesado que ele tinha que carregar. Pelo contrário, a
raiva ia aumentando e ele se sentindo cada vez mais rejeitado. Mas,
felizmente, na sua natureza de pé, ele continuava a caminhar para o próximo
passo.
Porém, cada vez que ele pensava em dar o passo, um medão tomava conta dele e o
deixava como que paralisado. Ficou nesse chove não molha durante algum tempo,
até que, num dia desses da recriação, o pé saiu do chão.
Foi como se o chão lhe faltasse; como se todas as suas referências tivessem se
perdido. Viu o corpo se entortar todo. No meio do caos dessa hora, sentiu
apenas uma felicidadezinha com gosto de vingança: a queda do corpo estava em
suas mãos.
Mas estava acontecendo muito mais do que isso. Viu, muito assustado, o mundo
todo mudando de lugar. Ele então se sentiu desequilibrado. Mas já não havia
mais como voltar atrás; ele agora fazia parte do passo.
Ele agora estava diante do poder de acertar o passo e ficar de pé ou cair
fragorosamente. O corpo cairia, mas ele também. Isso, para o nosso amigo pé,
era algo novo e mexia com os seus sentimentos.
Seria muito legal continuar com o seu desequilíbrio e derrubar aquele corpo
egoísta. Só assim o seu valor seria finalmente reconhecido. Seria legal deixar
o outro pé no ar, tão desequilibrado quanto ele; assim, o outro pé sentiria a
dor de não ter a certeza de poder estar com os pés no chão.
É. Seria.
Mas também seria desastroso para ele. Para que isso acontecesse, ele
precisaria continuar fora do chão até cair no próprio chão com todo o seu
fracasso. Seria uma vitória de pé quebrado.
É. Não seria melhor.
O pé primeiro teria que completar o passo.
Nosso amigo pé empenhou-se então na busca do chão.
Cada coisa no seu tempo, cada tempo no seu lugar.
Ele, então, completou o passo.
Foi um passo assustado, um passo tímido, medroso, mas foi um passo.
Ele pode ver o corpo se reequilibrar. Pode ver o outro pé se relaxar. Sentiu,
inexplicavelmente, uma ponta de satisfação.
Descobriu que, sem o seu passo, o corpo não teria como lhe dizer da sua
importância.
O nosso amigo pé teve que admitir que não vinha dando muita chance ao corpo
pra ele avançar e se reequilibrar.
Depois do passo, o outro pé estava lá, tão firme quanto ele. Tão igual a ele
como ele nunca tinha pensado. Ele, então, pode sentir a importância de ser pé,
de ficar de pé sem precisar derrubar o outro.
Nesse dia, um dia como tantos outros, o nosso pé pode descansar e deixar que a
vida corresse sem embaraços. Agora, ele era outro. Ele agora se sentia maior
na sua importância de pé sem raivas e rancores. Ele agora não era o outro pé.
Ele agora fazia parte do corpo, fazia parte do movimento, fazia parte do
próprio passo.
Colaboração Caroline Aparecida Helts
Caroline obrigada; por sua participação
Beijos GIOVANNA.
www.mulhervirtual.com.br
Autor desconhecido